O lugar dos livros impossíveis!

Falar de Camilo

Passam hoje 200 anos sobre o nascimento de Camilo Castelo Branco. Lembro-me de, quando abri a livraria, ter pedido à Ana Paula Lopes que pintasse alguns retratos de escritores portugueses.

Foi um conjunto vasto de que gostei muito. O José Paulo Cavalcanti comprou o Pessoa e o Eça e, mais tarde, alguém lhe ofereceu o Luis de Camões. O Almada, o Aquilino, a Florbela e o Gomes Ferreira ficaram por Torres Novas. A Agustina e o Camilo noutras mãos. Outros, por outras bandas. Todos no lugar certo.

Mais tarde, quando mudei para a R. Alexandre Herculano, voltei a pedir à Ana Paula algo sobre o Camilo porque queria fazer coincidir a reabertura com um dia 16 de Março. Apareceu-me então, inesperadamente com uma colagem, que passou a ser o ex-libris aqui do espaço.

Como se percebe, cruzo-me com Camilo todos os dias numa clausura de porta aberta, folheando com deleite e amiúde tanto do muito que escreveu. E recordo agora as palavras do Rei D. Pedro V, aquando da sua segunda visita a Camilo, na cadeia da Relação:

– Ainda aqui está? (perguntou o Rei)

– E estarei amarrado com correntes de ouro àqueles portões de ferro. (respondeu Camilo)

As grades com que abro e fecho a livraria dia a dia são assim algo que me separa de um mundo que, por vezes, me esqueço existir.

Vem isto a propósito daquilo que, há uns bons meses atrás me propus a mim próprio: “Falar de Camilo”. Ingenuidade a minha. Fui escrevendo alguma coisa, muito menos do que pensava, desejava e, sobretudo, Camilo merecia.
Desafiei quem entendesse partilhar comigo esse pequeno tributo ao grande mestre da escrita. Agradeço ao Albino Oliveira, camiliano confesso, a sua disponibilidade de primeira hora.

Por razões várias, a intenção que tinha não passou daí. De uma boa intenção que não consegui concretizar. Não seria difícil. Assim me pusesse ao caminho de outra maneira. Ou tivesse o “Coração, Cabeça e Estômago” que, definitivamente, não tenho.

Tenho pena. Dou um exemplo. Das mais de duas centenas obras que Camilo escreveu, em muito poucas é referido no título o nome de uma localidade. Torres Novas é uma delas. Talvez das menos conhecidas, é certo. Não a terra, mas a obra: “O Marquês de Torres Novas”, cuja 1ª edição data de 1849, tinha Camilo 24 anos. Vivia então na Hospedaria Francesa, no Porto, mais tarde, Hotel de Paris.

Conta a história da vida real de D. João de Lencastre, filho bastardo e legitimado do rei D. João II de Portugal que recebeu o título de Marquês de Torres Novas.

Não será um livro maior, mas talvez tivesse merecido alguma atenção por aqui, pela terra que lhe deu nome. Ao que julgo, passou despercebido neste ano do duplo centenário. Talvez ainda se vá a tempo.

Por mim, continuarei a abrir e fechar as grades. E a falar de Camilo à minha maneira, aqui, nos meus lugares. Sobre o drama e a trama, o amor e a perdição. A novela. O romance. O teatro. Ana Plácido, Simão Botelho, ou Calisto Elói de Barbuda. Os filhos. A cadeia da relação e de tanta ralação. O seu mundo e o mundo dos outros. E o monóculo, o bigode, a caneta e o revólver. E o leitor, sempre o leitor.

Porque Camilo escreveu sobre tudo, sobre todos, e sobretudo sobre as paixões da alma, como só ele o poderia fazer. Alguns, atónitos com o despudor, ousaram subestimá-lo. Em vão, com se veria. Outros, intuindo-lhe o génio, curvaram-se-lhe à mestria. Fê-lo Pascoaes em “O Penitente”, Aquilino em “O Romance de Camilo”, Agustina em “Génio e Figura”, e também Alexandre Cabral, Prado Coelho, Alberto Pimentel, Viale Moutinho, alguns mais. Mas Camilo é inimitável, como Eça inigualável, ou Aquilino irrepetível.

E é por isso que hoje, quando passam duzentos anos sobre o seu nascimento, o recordo nas suas palavras:
“… Que delicioso recordar, quando eu me estava vigorizando para entrar nos cárceres da Relação do Porto, e estender os pulsos às gramalheiras de ouro, que os meus inimigos batiam na bigorna da moral pública!…”
Afinal, “… O que é a virtude?” “É a fatalidade do Bem!…”.
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adelino pires
Torres Novas, 16.3.25
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