O lugar dos livros impossíveis!

Poderia ter sido pastor, cavador, até mesmo padre. Continuar por ali, caçando perdizes, perdido nas urzes, achado nas nuvens. Transmontano de granito com laivos de xisto, Adolfo, de seu nome próprio e Rocha como que se o apelido não pudesse ser outro tal a dureza da sala de parto, seus pais, pobres, pobros e com mais dois filhos para criar, haviam-lhe traçado o futuro: o Seminário ou o Brasil.

Ainda o destino balançava, já o Porto, a cidade grande, o roubava com dez anos apenas. Quais castanheiros de Novembro ou cerejas de Junho? Seria criado de servir numa casa apalaçada. Mas Adolfo, no meio de tanta etiqueta, escadaria e corrimão, não tinha onde se agarrar. Espreguiçando-se desde menino aos arraiais e navalhadas, faltava-lhe o voo do pássaro e também o ninho, a corrida da lebre e também a toca, a Senhora da Azinheira, talvez o pecado.

A reclusão no Seminário de Lamego onde, mais latim menos lábia, cedo percebeu que, padre nem de confessionário, foi então a sentença. De lá lhe terão ficado memórias com que se vingará mais tarde em “O Outro Livro de Job” ou até mesmo em “A Criação do Mundo”. E só a ameaça de se atirar da ponte abaixo, consegue que o levem a sério. Definitivamente ali não continuaria.

A alternativa seria o Brasil. A fazenda de um tio rico, rico tio que teria (quase) tudo: terras, gado, gente, dinheiro, poder. Só não teria mão na mulher que, com receio e ciúme que o miúdo lhe herdasse o império, lhe foi fazendo a vida negra. Como negras foram as vivências que Adolfo por lá viveu, nos cinco anos que por ali andou, entre os treze e os dezoito, de uma adolescência perdida entre feitiços e descobertas. Num remoque de consciência, o tio devolve-o a Portugal pagando-lhe os estudos em Coimbra.

O mundo mudou então para Adolfo. Completa o Liceu. Cursa Medicina. De Adolfo passa a Miguel. Diz-se que por homenagem a dois vultos literários que já admirava: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. E junta-lhe Torga. Como testemunho à urze bravia das terras que o viram nascer. Passará assim, a ser Miguel Torga para sempre. Nome quase perfeito. Como que nunca podendo ter sido outro que não aquele.

Em Coimbra, conhece, entre muitos, a gente da “Presença”: Régio, Branquinho da Fonseca e Gaspar Simões. E Nemésio, professor da sua futura mulher. Publica o seu primeiro livro, “Ansiedade”, o segundo, o terceiro. Depois, mais de quatro dezenas. Muitos deles, em edições de autor, para assim tornear o crivo da censura. Como ele, sempre sóbrios, despretenciosos, autênticos.

Torga transportou ao longo da vida a aridez das suas origens. Dizem-no reservado. Mas poderá ser assim tão reservado e interior, alguém que depois se dá ao mundo e escancara as portas de si próprio naqueles dezasseis volumes do seu memorável “Diário” ou na meia dúzia da magistral e autobiográfica “Criação do Mundo”?

Dizem-no ainda duro, distante, algo brusco até. Mas poderá a obra não ser quem a escreve? Como seria então possível tanta página, tanta poesia de sensibilidade pura?

Torga foi ainda e sempre um homem de causas, atento e não indiferente a um Portugal cinzento e socialmente assimétrico. A sua dimensão humanista está bem expressa em toda a sua obra. Ou, como dele diria Manuel Alegre, naquele “rosto de Viriato”, onde se escondia uma referência literária, ética, afectiva.

Foi ainda e sempre, mais médico por obrigação e escritor por devoção. Mas, quem ler este excerto, escrito em Dezembro de 1953, acompanhando o seu pai nas vésperas da sua morte, perceberá decerto, a real dimensão de um verdadeiro humanista de granito:

“… Cá estou a lutar pela última raíz que me resta. Meu pai teve uma hemorragia cerebral e vim acudir-lhe. Mas, inerte e de boca torcida, o velho parece sorrir-se ironicamente da minha aflição… Com a serenidade que posso, vou chorando por dentro e actuando por fora. Que há-de fazer um filho, senão ser fiel à cepa, e um médico senão medicar? De resto, diante dos tais relógios parados, a única saída é dar-lhe corda. Mesmo que não andem, ficam carregados da nossa energia, que nos defende da inércia escarninha deles…”, (S. Martinho de Anta, 13 Dezembro 1953 – Diário, Vol. VII)

Por tudo isto, no mês em que passa mais um ano sobre a sua morte, não bastarão os seu livros. Será necessário o exemplo. Porque, “…Podemos transigir em tudo, menos na literatura. Percebendo que o único poder que conta é, verdadeiramente, o terrível poder de recusar…”

 

Adelino Pires I Agosto 2020

  • (texto publicado há tempos no Mediotejo e agora recuperado, assinalando o nascimento do escritor em Agosto de 1907)
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